correios
“Gosto de saber que vives, / Mas não perdi a cabeça / Nem
corro atrás do desejo;
Quem se agarra muito ao sonho / Vê o reverso da vida / Nos
movimentos dum beijo.”
In Complicadíssima teia de António Botto.
1.
(para teu sossego)
portanto, meu amor eterno,
tudo isso é verdade
e tão real e verdadeiro como o ar
por onde voam
agora
estas palavras
essas imagens
de cromatismos cintilantes
comoventes como o arpejo na voz.
não tenhas medo da metáfora nem da imagem.
astutamente, como insistidamente* sabes,
grava o ângulo e o perfil dos nossos sonhos
pois partilhamos os mesmos estranhos secretos
e, partilhando, os mesmos sonhos
sabemos
que nunca fomos estranhos
segredo nosso.
portanto
e em conclusão do que falámos
sossega, amor, descansa-te e confia
pois essa loucura, se rara,
também perturba
amorosamente os viandantes de casas
amoravelmente os residentes nas nuvens.
há muito tempo — suspeitavas e agora sabes —
há muito tempo estava combinado
o nosso passeio pela rua fresca
de mãos dadas, apenas as mãos juntas,
pois as almas em chama nos agasalham
com o violeta e os azuis da claridade.
tudo o mais é íntimo. real. profundo.
retoca cada veia do meu corpo
teu também, curva da mútua pele
cada fino arco ou linha onde aprendeste
a registar e inventar como sorrir-me.
ao toque do ar comum, vibramos.
tudo o mais, real e partilhado,
tudo o mais pouco perdura como a lágrima
doce
agora aqui a turvar-me estas falsas letras
enquanto invento, preservo e esmero a tua mão.
* esta palavra não existe; com o
neologismo pretende-se significar : acção ‘tida’ ‘insistentemente’ .
2.
encantada saboreio o travo novo
a bátega de brilhos em sintonia.
encantada sigo e, creio mesmo, enlouquecida
pois do nosso tempo não consta a eterna leveza.
encandeada por pouco tempo sigo
convencida do lastro e dos rumores
aquietados sob a vibração do gesto.
sigo ansiosa ante a pulsação do ombro
onde nasce o amplo peito o ágil pulso
ramo onde poiso onde me permaneço
aninhada, no avesso do dia-a-dia
— desordenadas que também as horas vão.
sigo poiso permaneço-me e te sinto:
sentir-te é a metáfora mais certa.
o desalinho dos olhos exige espaço.
o desencontro de vidas espera-nos, terno,
pois sabe que somos herdeiros do espanto
ao longo dos amealhados tempos longos.
o desabrigo dos corpos abre, em nós,
a miudinha dança requebrada enlouquecida.
encantada saboreio o travo novo
luminosa, uno-me em pulsação, em ombro
em teu peito ágil nasço-me em ramo
onde poiso me permaneço e te consolo.
enebriada com o sabor o travo novo
provo-te plenamente: mosto e sumo.
— provar-te é a metáfora mais sábia.
enebriada, fisicamente ébria
textualmente embriagada pelas pausas
— letras unidas em palavras mas, pausadas
distanciadas
até a paixão desfazer sentidos —
enebriada pela vibração, pelo teor
embriagada por dispor do verso
intenso imenso aberto em vento
provo-te plenamente: mosto e sumo.
sabor novo trago nova luz aos mundos.
3.
tudo é possível pois nada é impossível
nada limita o eterno e o infindo
curso do tempo em ínfima ínfima pausa
curso do tempo ou rio por onde cresço.
tudo e nada pois as palavras, se bem que fadas
no fundo não significam nem substituem
a verdade enraizada no ar
a saudade a memória do que arde.
nada e tudo amplíssimo verbo
conjugação em gerúndios populares:
de todo o tudo que pode e sempre o foi
de cada nada impossivelmente vazio
sondo a esfera o vértice a espada e a rosa
afino o canto de cisne de algum dia.
das palavras cuido aliso falhas
limo arestas restos sílabas raspas.
das fadas do verso branco
das palavras
até da cadência de ritmos e entoações
posso abrir mão
que é como quem diz afastar-me.
noutro leito descansar-me outro desejar-me.
tudo é possível pois só se não consente,
apenas, o ínfimo gesto que me mata:
o acatar o pousar, refém do enquadramento
o acomodar entre o bolor e a prosa.
não significam nem substituem — as palavras —
a verdade enraizada no ar
a saborosa precisão do que arde.
nada e tudo amplíssimo verbo
conjugação em gerúndios populares:
de todo o tudo que pode e sempre o foi
de cada nada impossivelmente vago
refundo o sonho alço-me em espada, lisura
desabrocho meu puro peito de jasmim e rosa
e, para que o canto nunca se desafine
nem confine ao pardo fim embaciado
posso partir, pausada, meticulosa:
pois tudo é possível e nada é impossível
pois nada limita o eterno e o infindo
curso do tempo em ínfima ínfima pausa
curso do tempo ou rio por onde cresço
livre verso onde respiro e ardo enquanto amo.
4.
em cada vitral onde pareça brilhar
permanecer um vidrinho para mim
repara bem, atenta, cuidadosa
mente a tua vista projecta
tudo aquilo que temes para ti.
em cada retábulo da vidinha
onde me imagines em cenário ideal
atenta bem, repara cuidadosa
mente a tua vista confunde
tudo aquilo que tremes e não tens.
em cada recanto perfeitinho
em que encaixes falsas vidas emparelhadas
— a que te confinas e a que me imaginas —
atenta e cuida, repara e mente:
possa, uma vez, a tua visão regular
encarar o molde, a carapaça
suspeitando a vida o dentro o que já sentes.
5.
no dia em que eu te disser que parto
o que tens de fazer é dizer-me bem sei,
já mo tinhas dito, amor, num certo verso.
no momento em que, há-de, chegar a hora
de te soltar de vez livre a voar
de te entregar de volta à casa mãe
meu amor, podes, até, respirar fundo
baixar, pouco, a cabeça rodando-a sobre ti
fixar o olhar no longe ponto distante
o mais fundo que encontrares de ti em ti,
podes estremecer — mas pouco, amor, e sem demoras
nem dramatismo alheio àqueles cujos dias
devem ser devotados e enternecidamente
dedicados às artes de esferas e esquinas.
podes, meu amor eterno e de até sempre,
podes sentir algum arrepio na nuca
uma tremente veia descendo-te em ombro
em antebraço até ao lugar anónimo
onde não ponho mais advérbios nem adjectivos
porque, venho avisando das fadas,
das palavras: não evitam a pulsação.
nesse dia na hora e no pleno momento
— queira o acaso, se nos destinámos cumpri-lo —
no preciso instante e vez de despedir-me
peço-te, amor, apenas isto te peço:
guarda as virgens águas que te hão-de invadir
abraça as águas roucas que te vão magoar
cala-as no sítio onde o branco amargo devém pranto
mesmo que nem percebas a razão do leito
húmido e quente a marejar-te as formas.
no dia em que eu te disser que vou de vez
vais dizer-me bem sei, sei bem, amor meu
já mo tinhas dito, amor, num verso certo.
6.
o meu amor,
ao contrário do outro do poema
do poeta traduzido pelo Eugénio,
não anda pela cidade nem pelas ruas.
ao contrário da que espera pelo herói
não tece a colcha da fidelidade.
o meu amor, convém dizer, não é bem meu.
seres de asas são leves, intangíveis
jamais se afeiçoam a portados murados
nem se anexam como regra dos sobrenomes.
o meu amor, para que fique claro,
nunca me deixaria só para ir passear
veranear acompanhado ou só.
seres de asas desconhecem o fastio
vencem o tédio e o cansaço dos outros
polindo a luz aos dias da baça sombra.
o meu amor, cumpre-me esclarecer,
é independente dos aromas e dos timbres
da temperatura de nota clima ou saldo
independente pois livre porque intangível
o meu amor nunca vai nem está nem falta.
ser eterno é condição para ser amor.
7.
o poema que te escrevi ainda não está
tecido por entre letras nem palavras.
vem nascendo gemendo como a geada
que, quando menos se espera já é camada/de frio e água plena
[sobre
as coisas.
o poema que te escrevi nem sequer o sei
não o esqueço, pois, se o não recordo.
aliás, nem meu é esse poema.
é uma trama de brilhos e arrepios
um corcel sem farpas, toureio a dois
certa presença sem capote nem matador:
só dança de rosa, demente, sem prosa
só a dança colhida por teu passar.
o poema que respiro e tu respiras
(é mais segura e justa esta metáfora)
já anda tresmalhado pela cidade
e a cidade nem se sabe alucinada
a estação a praça o largo, pontes
de tão alumiados no verbo — no ar —
nem sabem do mesmo que nos cativa
num tal poema sem palavras nem letras
apenas o rio os troncos e outros animais sabem.
a estranha visão do que somos/derrama o silêncio deste amar.
8.
se bem reparei
(a imagem é fosca)
haveria, ali, um lugar
onde se sentaria
quieta
quietinha
ali, a vida aquietada.
se bem vi
(a imagem é parda)
o ângulo de abertura
é o previsto
manual de instruções
dia-a-dia.
se bem percebi
(a imagem é antiga)
zela pelo enquadramento
uma comum moldura
pura mas previsível.
— pelo menos foi o que entendi do que anexaste.
só mais uma coisa, antes de enviar este correio:
lembra-te, sempre e serenamente:
o destino é uma invenção da prosa.
o cosmos nunca pára de rodar.
a beleza recria-se no silêncio.
a verdade de uns é falsa para outros.
o tempo não existe nem avança.
as algas habitam os corpos sábios.
o coração da chama sabe voar.
a cada fala corresponde seu estar.
o verso branco não tem rima par.
a alegria é volátil e intangível.
a vida perturba mesmo o bolor.
o desejo refaz as convenções.
a ternura sobrevive ao habitual.
o cereal vive ao sol e ao ar.
o mar avança por portos e areais.
o destino é uma invenção da prosa.
o verso branco não tem rima par.
a saudade pode também ser recatada.
o lado de fora oculta a face sóbria oculta.
a linha recta só morre no infinito.
a distância é amiga da intimidade.
há tantas marés quantas artes de marear.
das missivas tem de constar o endereço certo.
por mais caminho andado há sempre passos por amar.
.
nb: para bem de tudo e todos
por cada asa por cada borboleta
respira fundo, alonga o olhar.
solta os medos. ama o sonhar.
9.
só agora trato da tontura inerente ao que vive
silenciado.
poderia tê-la chamado, acolhido
antes de refrear mares e medos
poderia ter tentado detê-la
ao mesmo tempo que abrigava a incerteza
poderia mesmo tê-la calado ou esquecido
relegado para o convés das marés
sim, poderia fingir que a recusava
à tontura do que vive silenciado
braço gemendo em cada abraço silencioso.
ó meu amor livremente amoroso
guarda-me no centro do voo tangente
dessa tontura viva.
10. (soneto)
trato a tontura inerente ao vivente
com a mesma negligente paciência
com que os anos semeiam cores e rugas
ou o despudor do sangue aquece o corpo.
trato o equilíbrio da irreverência
com a imobilidade de uma pena a voar,
da gota de chuva na borda de um telheiro,
da gota do mar saliente na onda em arco.
tomo a nervura do subtil movimento
conforme o consolo se habite de memórias
e ciúme e despeito cedam lugar à esperança.
vai, à aventura de cada sentimento,
a doce criança que me equilibra na frescura
na história da livre infância alheia a ranço e prosa.
11.
o travo e a tontura desse gesto é que resguardam o
direito a ser-se amado.
12.
o travo e a tontura desse gesto é que libertam, do
risco, o amador.
13.
o travo e a tontura desse gesto é que anunciam o
brilho aos amantes.
14.
sem o travo da tontura — sem o gesto — impermaneço e,
vazia, só aconteço.
.
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maria
toscano / 2012, em Coimbra.
(Casa
Verde: 28 Março; 5, 11-16 Abril; ‘jardim da manga’ Restaurante: 9 Abril; café
Tropical: 16 Abril)
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