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segunda-feira, dezembro 05, 2005

Heranças Doentes, José Manuel Pureza - Portugalito Out/2002

HERANÇAS DOENTES (Prof. Doutor José Pureza)

. Apresentação do Livro Portugalito de maria toscano (Palimage Editores)

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.Coimbra, TAGV, 4 de Outubro de 2002

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. «Eu vivo num país em que os headphones são usados como antibióticos sociais contra as bactérias do espaço público. Eu vivo num país em que o pontapé do Marco na Sónia tem direito a prime time (talvez por ter sido cirúrgico, talvez por não ter tido efeitos colaterais). Eu vivo num país em que há luta de classes: os empreendedores dinâmicos e modernos contra os contribuintes atávicos e broncos. Eu vivo num país que tem uma cimenteira num parque natural e uma cidade que não pode beber porque o rio leva mais veneno do que água. Eu vivo num país em cujas cidades as paragens de autocarro

.

“respeitam em pleno o taylorismo:

.os saltos altos, as gravatas – dissimulação das desgraças –

.atestam dessas vidas espertas:

. espera-se, em fila, pelo destino;

. diz-se a política do diae, do desafio, o golo fundo:

. todos – em fila – domam o mundo” (Maria Toscano)

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.É neste país em fila que eu vivo. O país do “luto fadista” (idem) e do “modo funcionário de viver” (O’Neill). Neste Portugalito, há poetas que nos apontam caminhos preciosos:

.“Subamos e desçamos a avenida

.enquanto esperamos por uma outra (ou pela outra)

.vida” (O’Neill)

.

.“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

.golpe até ao osso, fome sem entretém,

.perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

.rocim engraxado,

.feira cabisbaixa,

.meu remorso,

.meu remorso de todos nós…" (O’Neill)

.

.Neste Portugalito – que se imagina centro mas que nuncadeixou de ser periferia – multiplicam-se como cogumelos discursos reveladores de trágicas perdas e de dolorosas orfandades:

.“A minha política é o trabalho!”

.“Aqueles que dizem mal dos meus filhos, eu trinco-os!”

.“O meu partido é o Benfica!”

.“Eles que decidam, que a gente paga-lhes é para isso!”

.“Isto é tudo a mesma vigarice, pá! Eles só se querem é abotoar com o nosso, pá! E a gente que se esfalfe a trabalhar, não é? Pois, pá, é tudo uma cambada! É verdade, o teu chefe engoliu aquela da morte da tua tia?”

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.São discursos de capitulação e de doença social, com idolatrias estranhas, que vão do tunning ao jet set e do health club à evasão heroinómana. São afinal o contraponto vulgar do fulgor com que se instalou entre nós a teologia do mercado, com os seus ídolos, as suas liturgias e os seus sacerdotes. E, acima de tudo, com a sua legitimação pela Europa desenvolvida e ilustrada. Esta teologia, a que alguns chamam pensamento único – e que, no Portugalito, é apregoada como “aquilo que se pensa lá fora, na Europa” – assenta em três discursos complementares.

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.O primeiro é o discurso da funcionalidade. Enuncia-se nestes termos: é bom o que é tecnicamente evoluído, o que funciona bem. O mandamento máximo é o da performance óptima do sistema. E esta sacralização da performatividade óptima do sistema acarreta uma deslegitimação de todas as proposições que escapem, de alguma maneira, ao império da acção racional, ou melhor, ao frio calculismo dos fins.

.Muleta deste primeiro, o segundo discurso é o discurso do realismo. Enuncia-se assim: é fundamental ser-se realista e ser realista é basicamente reproduzir o que está. O realismo é um produto frio do clima intelectual do positivismo, assente no pressuposto de que as realidades objectivas existem como objectos independentes do sujeito que as observa e que sobre elas actua. Os factos (o que está) contrapõem-se aos valores (o que deve estar) e têm sobre eles absoluta primazia. Por isso, o que está é o que deve estar, porque a História nos ensina que sempre foi assim e tudo o mais é sonhar alto e cair num utopismo de realização prática inviável.

O terceiro discurso é o discurso do subjectivismo. Enuncia-se assim: cada um de nós é acima de tudo um indivíduo, rodeado de objectos disponíveis para a nossa absoluta apropriação. Cada um de nós nasceu para ser um “master of the universe”, dominador do seu ambiente próximo. É pela apropriação das coisas, das relações com os outros e pela manipulação da natureza que o indivíduo se reconhece como um ser livre. Ter “direito a” é a linguagem que a modernidade forjou para dar corpo a esta visão das coisas.

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.Suponho que Italo Calvino não conhecia o Portugalito. Mas podia perfeitamente estar a referir-se a ele quando pôs na boca do Marco Polo de “As cidades invisíveis” as seguintes palavras:

. “O inferno dos vivos não é coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar”.

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.“Onde haverá assim um País / feito assim a espaços, profundo (…)?” (Maria Toscano)

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.Porventura nenhures, porque o Portugalito que a Maria Toscano corta neste livro às fatias é suficientemente enteiriçado para ter resistido incólume ao liberalismo de 1820, ao 5 de Outubro e ao 25 de Abril.

.Mas, tal como o Polo relativamente ao inferno, assim também eu teimo em encontrar o que e quem não é Portugalito neste país. Para mim, esse país alternativo faz-se desfazendo e reconstruindo, com arrojo, duas heranças que trazemos há séculos às costas.

.A primeira é a da artificiosa contraposição entre Estado e sociedade civil sobre a qual construímos o discurso do “ter direito a” como símbolo da autonomia dos indivíduos face ao Estado e à sua capacidade opressiva. Aprendemos que a cidadania é uma categoria referida às relações políticas e que a res publica a sério é a que tem o Estado como referência central. Pelo meio, esquecemos o relacionamento horizontal entre as pessoas. Por isso, os direitos humanos e a democracia pararam à porta da escola, à porta da família, à porta da fábrica, à porta do bairro, à porta da comunidade internacional. Talvez por isso alguns de nós sintam, inconfessadamente como convém, tanta estranheza e tanto desconforto com a bizarra ideia, atempadamente travada pelo actual governo, de trazer a educação na cidadania para dentro da escola.

. A segunda herança que importa desconstruir é a da cidadania democrática como litania de práticas ordeiras, do chamado “bom comportamento cívico”. Importa resgatar o impulso subversivo que as lutas pela dignidade comum sempre tiveram e ter um pouco mais de pudor quando caímos na tentação de, desde a normalidade bem comportada, cooptarmos as práticas e as ideias dissidentes. É por isso que não faz sentido educar para a cidadania mas sim educar na cidadania.

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.Sem que saiba de cor o caminho desta transformação, aposto que o Portugalito açoitado e mimado nos versos da Maria Toscano pode mudar. E que a cidadania exigente e a democracia alargada hão-de estar no centro desse caminho.

.Outro poeta o disse com palavras muito mais belas e certeiras do que eu:

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.“Neste espaço a si próprio condenado

.Dum momento para o outro pode entrar

.Um pássaro que levante o céu

.E sustente o olhar”. (O’Neill)».

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capa do livro (Foto - Créditos: Nuno Patinho)

(NOTA: a má qualidade cromática deve-se apenas à edição deste blog, em nada se reportando ao Trabalho do fotógrafo citado)

pre texto “ (...) uma «maledicência» quotidiana de café sobre nós mesmos. Quando não é sintoma mesmo de uma degradação masoquista é um jogo que faz parte intrínseca do a-criticismo, do irrealismo de fundo de um povo que foi educado na crendice, no milagrismo, no messianismo de pacotilha, em suma, no hábito de uma vida pícara que durou séculos (...). Mas (...) tem também uma face positiva (...) traduz (...) a verdade de um imobilismo de alma ou de uma mobilidade sem objecto, tão própria do nosso projecto de vida colectiva desde a época crepuscular em que deixámos de ser um povo de acção paralela ao verbo.” (p. 53). “Seria insensato supor que entre os portugueses não se manifestasse como na humanidade, segundo Aristóteles, aquilo que nos eleva à dignidade humana: o apetite de saber, a paixão da verdade. Mas da verdade, o que mais nos fascina é a paixão que ela comunica e não o processo em que consiste a sua busca com a visão nela do que falta e não do que nela resplandece. (...) Quando o religioso perdeu o seu valor ouro ficou a política e hoje a ideologia. Mas a mentalidade é a mesma. (...) No fundo da nossa alma, como Pascoaes o viu bem, ficámos pagãos, familiares dos deuses e do Destino «que é mais que deuses», cujo veredicto por absurdo nos satisfaz paradoxalmente. Daí essa forma de indiferentismo, após o espasmo orgânico do grito, tão característico do nosso comportamento histórico. «Tinha de ser.» É o nosso lado árabe, porventura. (...) Faz parte do núcleo mais tenaz da nossa imagem mítica a ideia de que somos um povo de sonhadores. Nada menos exacto. Fomo-lo nessa Idade Méida absorvida, entre nós, como no resto da Cristandade ou fora dela, numa atmosfera que não separara ainda a imaginação da razão, mas cedo se estabeleceu a clivagem paradoxal e num grau que noutros países europeus não conheceram (...) (p. 54-57). “Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si”. (...)

. “A Revolução de Abril restituiu ao cidadão português a plenitude dos direitos cívicos comuns às democracias ocidentais, operou uma mudança nas relações de força entre a antiga classe dirigente e possuidora e o povo trabalhador, mas não encontrou ainda aquele ponto de apoio que sem precisar de ter o odioso perfil de um nacionalismo chauvinista, paranóico e irrealista, corresponponda ao sentimento de natural fruição da autonomia e da dignidade nacionais.(...). Desde o início, a Revolução cometeu uma falta que, esperemo-lo, não lhe seja fatal. Hipnotizada pelo puro combate ideológico (...) descurou em excesso o senti-mento nacional, deixando à futura Direita, após a cómoda hibernação que lhe ofereceu, a sua exaltada e frenética exploração.” (p. 65-67).

. “(...) ... lenta e inexoravelmente, a mentalidade de uma classe ociosa e sem finalidade transcendente, desce e se infiltra nos interstícios da sociedade portuguesa no seu conjunto como sociedade em perpétua desfasagem entre o que é e o que quer parecer (...)” (p. 144).

. “Se a título individual a nossa mentalidade de ricos nos obriga a contorções caras, mas com juros à vista, a título oficial, a mesma mentalidade opera sem entraves e a responsabilidade dissolve-se ao abrigo da vaga rubrica dos «interesses superiores do Estado». (...) A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de ali-mentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros, gasto alegremente como se fosse nosso. Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado baquete dos «cravas», para o etiquetar com a vulga-ridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma «pouca sorte» que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga.”(p. 147-148). “A sociedade portuguesa não é a única que vive sob o modo de uma quase total exterioridade e em obediência ao pendor irresistível de ocupar nela o lugar que implica o mínimo de resistência e o máxino de promoção social segundo a norma do parecer mas é certamente uma das mais perfeitas no género. E será de certo pouco provável esperar, antes de longos anos (...), uma mudança consciente naquilo que não é da ordem do político, embora o implique, mas da ordem obscura e de trama quase orgânica da mentalidade. Mas se essa mudança não é uma utopia, só pode esperar-se da transformação da mentalidade económica e social coadjuvada com uma prática pedagógica digna de uma sociedade anti-individualista, aintiegoista, como, em princípio uma sociedade socialista deve ser.” (p. 145-146)

. Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade.

. Lisboa: D.Quixote (2ª ed.) Jun/1982 (subl. no or.).

...

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.o cão é o melhor amigo da mulher

.

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.é cão

.não faz ão ão

.e é bom amigo como os que não:

.

.é boçal, não leal nem companheiro

.é boçal, brusco ou matreiro

.é boçal, marido ou companheiro

.é boçal, lascivo ou soveiro

.

.

.o machão

.não faz ão ão

.e é, da mulher, o amigo primeiro.

....

.outro polido galo nacional

.

.és perfeito.

.da curva escanhoada à gola alta

.

.no ângulo de piano no gesto

. nos 2 botões - do lado - desabotoados

. esquerda onde sentas o blusão,

. na pele pura calçada

. aos ombros

.unha roída.

.

.discreto ressumbro

.da doencinha em menino.

.no cruzar nos abertos

.disfarces do umbigo

. perfeito assunto

.assento certo

.colo desperto

.

.na ruga que arrastas em sorriso

.e noutras, belíssimas, de essência

.

.

.és perfeito.

.na branca única inegável

.corte de homem perfeito

.na visão que abarca e fica

.

.

.homem perfeito dentro criança

.e na insidiosa insegurança

.do seguro tocar

.rodar no dedo

.a aliança.

Sem comentários:

já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
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faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
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chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
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nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
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como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
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ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
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