"NADA TEU EXAGERA OU EXCLUI"
Pressupostos e fio condutor de uma seleccção - Poemas e Textos Pessoanos
A selecção de textos que a seguir se apresenta brota da perplexidade continuada face à Obra de Fernando Pessoa.
Caracterizada a sua unidade identitária pelo que resumimos como diversidade paradoxal, é pelo movimento do interpelador Desassossego que o Autor desdobra as várias vertentes da meada discursiva ( poética, estética, sociológica, filosófica, ideológica, esotérica…) pessoana.
O ponto de partida desta selecção foi um convite da Casa Municipal da Cultura de Coimbra para integrar o evento relativo aos 70 anos da morte de F. Pessoa, do qual consta uma intervenção, breve, no espaço da Biblioteca Municipal de Coimbra, abordando Vida, Época e Obra de Pessoa - com recurso a diapositivos trabalhados a partir de “O Livro do Desassossego” -, e uma leitura (nas Salas de Catálogo e de Leitura da Biblioteca Municipal) de Poemas significativos.
De modo a articular e completar a abordagem audio-visual - concebida pela Casa Municipal da Cultura de Coimbra - a escolha dos textos para leitura abrangeu Poemas dos 3 Heterónimos mais divulgados – Alberto Caeiro (4 Poemas); Álvaro de Campos (3 Poemas, incluindo-se um fragmento da Ode Triunfal); e Ricardo Reis (3 Poemas) - como também fragmentos, curtos, de outros (6) textos do próprio Fernando Pessoa.
Da articulação entre as 4 assinaturas, pretende-se colocar em interacção aqueles pontos de vista de diversidade paradoxal, ao longo do total de 16 Textos e Poemas seleccionados.
É pois, fundando-se nestes pressuspostos e escolhas, que se elaboraram as propostas de título para a sessão, bem como do respectivo «volante», e o “alinhamento” dos textos para leitura, que passam a apresentar-se - não sem que antes se apresentem os devidos Agradecimentos à Casa Municipal da Cultura e, pelo apoio facultado, a Rui Mendes.
maria toscano, a 20 de Novembro de 2005
...
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
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