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1.
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cansado de caminhar pela Península
recostou-se, o deus, à beira rio
descalçou as sandálias de folhas secas
desatou a liana da cintura
para descansar
o manto
na terra fresca estendeu as pernas
sorriu
e em brilho de ouro
as águas se espelharam.
passou uma mão pela testa alta
refrescar-se depois de a molhar
rodou o pescoço até ao solo
recostando-se mais no vizinho tronco em concha.
repousado, assim, adiou o seu trabalho
(como só aos deuses é consentido o adiar)
fechou os olhos.
fez-se dormir
desprendendo-se, devagar, do corpo.
deixou-se, respeitador, a recobrar
durante os séculos dos séculos sem tempo.
um dia, há-de voltar ao seu lugar
que dessa vez abandonou para, de novo,
dar vida ao que é só desmesurado
— ao que, para nós, nada mais são que granitos
....desvitalizados especados à margem
....na margem direita do Rio De-ouro.
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2.
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estes socalcos com folhas verdes
são escadas velhas
onde cerejas e uvas
hoje
guardam trilho de deuses
resgatado trilho do baixo ao alto
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por isso as flores de brincadeira são brincos de princesa
da deusa embelezada para a subida.
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3.
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da crónica de viagens ressalvo apenas
o verde erecto, o azul paciente
disposto a lavar gestos sem gente
carreiros de horas agarradas à enxada
rugas obstinadas a desgranar calhaus
ressalvo, pois
— sobretudo, ressalvo —
a mão de ofício. sedução. Natureza.
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4.
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um pouco mais de força, cresce o tronco
um pouco mais de luta, nasce a parra
um pouco mais de esforço e faz-se a casta
que esse pouco mais de algo atingiu De-ouro.
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5.
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desliza pelo azul. o verde espelha.
ladeados — o espelho é o caminho —
pés socalcam a aridez, gerar o vinho.
desliza pelo azul. este caminho
amassado em broa ou regueifa loura
sob o espelho revela o grande ofício
que é este de fazer-se e ser feito à mão.
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6.
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desapiedadamente
desceu a lâmina
fatiando o lume denso roxo inteiro.
socalcos-trás-socalcos
o que se erguia
era, foi lâmina
aço esquinas horizontais
desapiedadamente
o amoroso
recolheu-se na casca de onde vinha
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ainda lhe oiço o timbre a conversar,
vezes, há, que caminho à sua beira,
nossos braços roçam-se por instantes,
se a lua é cheia o travesseiro suspira
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visto os olhos com a água clara da Régua
os ouvidos com fados da Graça ao rádio
vê-se, então, um castelo, colinas
colinas de luz pura ternuras puras
me arrepiam o passo (sigo no barco)
e aprendo
de novo:
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a guitarra é mulher.
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só de mão aberta se refaz o fado.
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7.
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vogo, vagarosa, sobre o leito
azul esverdeado verde e amarelo
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vago. vou. sou a via vagarosa
alma do leito água que alumio.
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ciosa imanente silenciosa
sou da mesma casa
ondulo com a deusa una
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vogo. vago. Sou e alumio.
Mulher
marginal leito central.
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maria toscano.
em viagem pelo Rio Douro. 3 Setembro / 2004.
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