«Destruir, diz ela»
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Marguerite Duras
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pelo caminho côr de terra e folhas
chegas,
pensou.
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horas
algumas
depois de acordares com a luz do sol
preguiçosa e fresca
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ao contacto do chão
o pé estremece-te com cócegas
preguiçosas
até à taça das tangerinas
frescas,
pensou.
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gomo após gomo
ficam-te as mãos doces
como lábios
(doce acordar de lábios, esse,
teu), sonhou.
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ao lado da banheira há uma toalha
e alecrim, algum,
seco
antes do banho.
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tempo depois
algum
estás desperta
para o roupeiro, depois a saia
de malha
de xadrez
a blusa de malha
e o casaco
azuis
depois,
imaginou.
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é pelo caminho castanho
primeiro só de terra
mais à frente, de galhos e folhas
de outono
que avanças, preguiçosa e fresca,
em pegadas de botas que só ao vento cabe apagar,
supôs.
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chegas, pensou, por esse caminho.
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nada que, antes, ambos não soubéssemos.
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desde há dias.
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alguns.
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é claro que esse caminho nem existe,
(diz em voz alta para logo se calar no café da baixa onde os clientes o olham por momentos.)
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é claro que
esse caminho
não existe, pensou,
sobretudo agora que deixaste esta cidade
já lá vai tempo.
algum.
alguns dez anos, recordou.
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e é provável que até já nem vistas saias
de malha de xadrez
casacos ou blusas
azuis.
que até já não faças tu a roupa
convertida à comodidade
do pronto-a-vestir.
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e é evidente que também te poderás ter cansado
do branco nas toalhas
do alecrim no banho
das tangerinas e de tudo o mais
que leve a memória até nós,
pensou.
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por certo é isso mesmo que acontece.
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talvez verdes, azuis-turqueza,
côr-de-laranja?
talvez toalhas de xadrez
com bordados
aplicações ou poemas do Pessoa?
talvez até só um duche
rápido
catárctico
e sabonete de glicerina defensivo
inócuo
- natural em série - ?
talvez de pinho
uns ridículos rectângulos
pendurados do lado de dentro da sanita?
ou talvez
apenas
jasmim,
lembrou,
que nunca consentiste que partilhasse.
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chá de jasmim, arroz, de jasmim, incenso. de jasmim. poesia de. jas-
mim.
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"é o limite da miinha identidade", repetias-me,
"com o jasmim sei que existo. independente
mente de ti. de nós.", repetias,
lembrou.
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não!, não ias acreditar! mas nestes dez anos foi o meu consolo.
o jasmim, claro!
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primeiro em pau de incenso
pouco a pouco
foi-se tornando minha companhia
diária
no banho no perfume na comida
até que comecei a fumar.
jasmim.
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pois, não ias mesmo acreditar,
pensou,
apesar de ser a primeira verdade que te digo
inteiro
ao fim deste, algum, tempo.
deste tempo de jasmim.
porquê?
é que
sabes?
só o jasmim me tem mantido
acordado e de pé
pessoa reles - confesso -
e, hesitou,sabes?,
neste tempo de jasmim
houve mais silêncio tecto e aranhiços
caminhando-me.
do que palavra.
mais ódio raiva ira e
ganas de morrer
tantas que nem seria justo chamar este tempo
de tempo,
disse.
um vácuo
incolor
precipício enorme sem eco
nem pedrinhas que resvalem
sem riacho a correr lá em baixo no cenário
sem oxigénio nem gravidade
vivos.
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como vejo agora a tolice da urgência e da avidez
do domínio rude
desse estado frio, prévio à minha humanidade
que só tu tocaste sem que eu quisesse
sem que que quisesses
sem que o quiséssemos
- desígneos do jasmim, chego a pensar,
lembrou.
como vejo
agora
que afinal todo eu era medo.
nem rebeldia
nem liberdade
- medo de abrir as mãos devagar
de abraçar o silêncio o consolo
de encostar-me a teu ombro
recostar-me em teu colo
de ficar.
inteiro,
disse.
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estas tolices todas que para aqui
estou falando
- e esse caminho que nem existe,
disse.
mas que importa?
ao menos, deixo-me
uma vez
esperar-te.
ternurento.
amável.
deixo-me uma vez, nesta vida que me tramei,
habitar e viciar pelo halo da compaixão
pelo laço do sossego
pelo abraço da consoloção,
disse.
deixo-me, repetiu.
deixo-me, uma vez, nesta trama que me fiz,
ser inacabado
imperfeito
carente.
- amável, repetiu.
deixo-me saber que sem nunca te amar
foi o Amor que te me trouxe
e te me levou
deixando um verso de jasmim.
sim, que importa, agora?
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sei bem que estamos de acordo quanto a isto.
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até sorris
com os olhos baixos
e voltas a cara lá para fora
para não te entrar na alma.
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bem o sei, Amor.
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e sei, sobretudo,
que chegas por esse caminho castanho
lenta e vagarosa
pois acolheste o meu pedido:
«Mata-me!,
com a polpa da língua
esses minúsculos génios que degelam
o meu lívido lábio inferior.
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Mata-me!» - ouviste e vieste.
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porque só tu ainda sabes
passado este, algum, tempo
que só os teus graves ângulos obtusos
de seiva
lambida seiva
podem estremecer-me o peito de pedra.
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«Mata-me!»,
diz ele,
«de vez
com o pulsante ardor do sangue que entregas
frescas ramagens de louro e palma
no dorso enferrujado que carrego.
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Mata-me!»
diz
«de ardor leve
com tuas coxas
ronda-me os joelhos e os tornozelos hirtos
por auto-comiseração, hirtos
enlouquecidos pela solitária vitória de meu ventre.
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Mata-me!», diz ele,
«com cerejas e amoras
entumescidas horas, fermentação de soros
e sara-me a costura da esperança
que só habito pelo jasmim.
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encarecidamente,
Mata-me!»
diz ele
«a ira o ódio e o horror
em que converti a Dádiva
de jasmim.».
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maria toscano, Inédito
Coimbra, 2007 (Novalmedina estádio, 27 Abril); Aveiro (Restaurante Centenário, 2 Maio).
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2 comentários:
um beijo
carinhoso
gostei do que li.
della (fuser)
aparece
agora vou "postar" o resto...
bj
Bem Haja!
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