Central Blogs
. Licença Creative Commons
sulmoura de Maria Toscano está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Baseado no trabalho disponível em http://sulmoura.blogspot.pt/.

sexta-feira, maio 18, 2007

Pastoreio,José R.Marto - Poesia1ºPremioLitterarius

Fui guardador de rebanhos sem flauta, sem outeiro
.
.com páginas colhidas nos livros a eito, em linhas altas lidas
.
.quando descansava o rebanho e a paisagem tinha escritas
.
.árvores ao sol, frutos ardidos, poeira de brisa, manga curta,
.
.camisa desfraldada
.
.eu, na sombra recolhido.
.
.
.
.Fui pastor de quase nada.
.no canto dos pardais revoadas, bicando o ar de linhas curvas
.nas largadas de pombos ao fim da tarde
.ou das rolas sobrelançadas, furando o céu, na declinada
.água ferida de redes, esvoaçando penas picavam linhas cinzentas,
.mosquiteiras
.sob o atarantado das borboletas vermelhas, verdes, azuis na
.presa dos rendilhados,
.desembaraçavam-se das grilhetas fechadas a puxão de espera,
.magra caça.
.Fui companheiro dos bichos que encontrava desirmanados em
.fugas desajeitadas,
.do lagarto escamado a verde e azul,
.da cobra serpentina preta num ápice engolida pelo feno,
.da lebre fugitiva e astuta à noite sob o trilo dos grilos
.ou da batuta da campainha das ovelhas.
.Fui guardador do mundo no chão das ovelhas
.presas por linhas que nos meus livros deixaram às vezes espaços
.de página em página,
.onde eu me lia e guardava num mundo lido alto; de tempo a
.tempos
.a passagem dos comboios, lentos, de horários certos, horas
.secretas
.do calor dos dias, na convocatória das madrugadas,
.de quando um rio horas a fio as alinhava,
.as abria por dentro filtradas a sol alto, baixo ou à ferida dos
.ventos,
.da capa que me protegia da água dos dias raros em que chovia.
.
.
.Guardei ovelhas,
.guardei as revoadas dos pombos no meu coração.
.Fiz as minhas viagens directas abandonando o meu fôlego de
.bicicletas, ardendo por
.dentro dos livros, onde recompunha escombros,
.unindo amiúde as quebras do mundo.
.Guardei ovelhas não guardei cabras,
.como meu irmão já muito mais velho Miguel Hernandez
.que fez tantas descobertas em horas tão incertas,
.numa Espanha de tempos muito antes dos meus.
.Hernandez morreu no cárcere sem ceder um traço na rebeldia
.dos versos
.de puxar as palavras do avesso
.de se afastar do terço.
.de se irmanar com as cabras que pastava em Orihuela.
.Guardei ainda mais rebanhos,
.guardei ainda mais ovelhas sendo outras ou as mesmas,
.quando os pastores fugiam em debandada de noite
.por sangrarem neles solidões
.nos longes dias, nas longas horas que havia no pastoreio do gado
.manso,
.na rebeldia dos ocasos em que o sol menos aquecia,
.o gado aproveitava e comia,
.o tempo em que andava pardo e comia.
.os pastores fugiam,
.como se de prisões de guardar do gado
.levavam a flauta de Marília ou de Elisa
.voltavam em mangas brancas de camisa
.festejando aparecimento, fazendo promessas:
.juravam a água, o sol, os frutos,
.juravam afeiçoamento às crias, pertencer à família
.queriam-se nos rituais do gado,
.na separação, no aprisco
.nos canjeirões de leite
.no fazer do queijo, um fruto nascido por suas interpostas mãos,
.liso, aceso,
.milagre do coalho ardido nas palmas árduas, nuas
.juravam por fim as geadas aos espelhos,
.saudavam, cumprimentavam de quem viesse a sua vaia mão
.apertar.
.Mas fugiam às solidões dos dias,
.ao fumo das neblinas das manhãs,
.ou à intrépida chuva,
.ao calor que a noite amealhava,
.ao pastoreio úbero logo no Outono.
.Corriam as estradas com assombro,
.iam as casas longínquas pedir água,
.veio o seio insinuado das raparigas, pedir-lhes compromisso de
.guerra,
.dos dias curtos de que estavam à espera,
.estudavam-lhes o cabelo,
.viam-lhes o manear das ancas,
.a escultura da perna.
.Bebiam água pelo púcaro, enchiam o cantil,
.enquanto outros dobravam assobios também à espera de uma
.madrinha mulher
.uma fada de dias ilesos
.que presos hoje ou presos depois
.se queixassem da condição escondida das mais altas solidões.
.eu fui pastor pequeno que levava recados maravilhados
.e trazia água, água,
.a água dos Invernos ou dos Verões que eles bebiam serenos.
.
.
.Os momentos amenos, a sede insegura, a água fresca, quase pura.
.
.
.Naquelas horas sem batida de relógio o coração a pulso,
.eu compreendia aquele mister,
.aquelas guardas de horas, como se o cavalo do tempo ficasse
.suspenso nos ares
.e a ele viessem pousar no dorso uma chuva de borboletas. .li-lhes as minhas letras de livros,
.alguns deles ouviam comovidos com os cajados fincados no chão,
.como se supensa ficassem a página,
.as surpresas, as desfeitas do formigar do amor, a incompreensão
.dos dias.
.A comunicação espalhada no chão
.onde laboravam formigas, o milhafre sob arco as via a pino,
.e em queda livre as devorava no montículo.
.Apenas uma ou outra ovelha se sobressaltava,
.soprava um ar de brisa deslassado.
.Alguns queriam ler, eram-lhes fáceis,
.as horas pediam-lhes entretém,
.jogavam pedras ao ar,
.desfiavam a contar glórias inúteis
.à noite andavam horas e horas a pé,
.à procura do destino de um café.
.Juravam vinganças vindouras e com vassouras exorcizavam
.os pés.
.Eram eles, os pastores, os pastores muito senhores de muita
.solidão,
.os pastores de casa de meu pai,
.os pastores de quem meu pai guardava distância de respeito
.consentido
.que dava folga ao domingo e me tirava as minhas corridas de
.bicicleta,
.a bola entre pés,
.os livros de página vincada,
.a procura das minhas belas, desejadas.
.e me tornava pastor,
.eu também era o pastor dos domingos
.eu era pastor de rebanhos de domingo
.como Miguel Hernandez muitos anos antes foi pastor de solidões.
.Eu não era pastor de solidões,
.eu tinha livros,
.eu aprendia o ofício dos dias,
.o mais puro ofício dos dias, a solidão de estar comigo.
.Fui o pastor de meu pai nas horas das aflições
.em que feitas previsões se dava o descanso aos pastores,
.em que se fechavam de amores inconfessáveis pelas madrinhas de
.guerra,
.pelas suas gratas madrinhas de guerra,
.as madrinhas de guerra que pensavam
.ter solidões de muitas esperas, agora as do gado,
.depois com uma guerra, um coração de mulher não se abria,
.eles eram de outra natureza,
.embora a integridade às vezes tendesse à aspereza de uma palavra
.maldita,
.e acudia a desculpa logo aflita
.não se abria o coração de mulher com a promessa de uma guerra,
.isso não tornava íntegra a espera -
.- dizia minha mãe aos pastores que dispostos nos seus amores
.lhe entregavam como penhor
.os seus segredos,
.- à guerra vais
.- da guerra voltas
.- não temas na incerteza
.não se abre o coração de uma mulher, com a promessa de uma
.guerra,
.se assim for abre-se a porta do medo.
.Eu fui guardador de rebanhos,
.interroguei as coisas simples:
.o silvo das cobras,o piar dos mochos à demanda das noites,
.a queda do sol nos pinhais,
.o regresso dos pombos,
.os pavões que só desferiam grito aquela hora,
.o zurro de um burro que dividia o dia em duas partes.
.
.
.Fui guardador de rebanhos
.e interroguei as coisas simples:
.a ordem dos dias suspensos,
.o labor dos pássaros,as asas das borboletas,
.bebi o leite a mojo úbere
.a regalo dos pastores.
.
.
.Um alimento exacto e seguro
.no contentamento puro dos meus cinco anos
.E a minha mãe dizia-lhes...
.As mulheres dão-vos o alimento pela colher,
.acodem aos filhos a ralho,
.acreditam no embalo das sereias nas águas cativas do mar,
.têm sempre as mãos cheias,
.que mais delas se pode imaginar.
..
.
. José Ribeiro Marto ( Portugal ), modalidade Poesia, 1º Prémio.

5 comentários:

Anónimo disse...

Quero partilhar a alegria que senti quando soube. Pela poesia, por uma vida feita de um sonho - o sonho da escrita.

emedeamar disse...

assim é!
subscrevo!

R.M. disse...

Parabéns pelo poema. De facto está magnífico.

emedeamar disse...

simmmmmmmmmm! MAAAAAAAAAAAAAAAAG NÍÍÍÍÍ FIIIIIIIIIIIIIIII COOOOOOOOOOO!
:-)
Bem Vinda! volte! (já transumanciei - ou seja lá como se diz...)

emedeamar disse...

atenção, o endereço do Premio Litterarius mudou (e especificamente o deste Poema) para
http://litterarius-racal.blogspot.com/2007/05/pastoreio.html

bêjus (à Sul)
:-)

já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
.
faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
.
chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
.
nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
.
como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
.
ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
.