"Também a memória não é compreensível à falta de uma abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo da vida armanezada na memória. Nunca se tentou calcular esta relação e não existe de resto qualquer meio técnico de o fazer; no entanto, sem correr grande risco de me enganar, posso supor que a memória não guarda mais que um milionésimo, um bilionésimo, em suma, uma parcela perfeitamente ínfima da vida vivida. Também isto faz parte da essência do homem. Se alguém pudesse reter na sua memória tudo o que viveu, se pudesse a qualquer momento evocar fosse que fragmento do seu passado fosse, nada teria a ver com os humanos: nem os seus amores, nem as suas amizades, nem as suas cóleras, nem a sua faculdade de perdoar ou de se vingar se assemelhariam aos nossos.
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Nunca acabaremos de criticar os que deformam o passado, o reescrevem, o falsificam, que dilatam a importância de um acontecimento, calam a de outro; estas críticas são justas (não podem deixar de sê-lo), mas não têm grande importância se não forem precedidas de uma crítica mais elementar: a crítica da memória humana enquanto tal. Porque, que pode esta, pobre dela, na verdade? Não é capaz de reter mais que uma miserável parcelazinha, sem que ninguém saiba por que motivo justamente esta e não outra, uma vez que tal escolha, em cada um de nós, se faz misteriosamente, à margem da nossa vontade e dos nossos interesses. Nada se compreenderá da vida humana enquanto se persistir em escamotear a primeira de todas as evidências: uma realidade, tal como existia quando existia, já não existe; a sua restituição é impossível."
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Asa, 2002. Tradução do francês de Miguel Serra Pereira, pp. 108-109.
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