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"os meus amigos são,
só,
pessoas interessantes.
o funcionário público que se balda
o mais que pode
o vendedor seja do que for
que importa? desde que te enrole
o gestor do inexistente negócio
desbaratando o nome do pai
o desempregado que apenas
quer trabalhar desde que não trabalhe mas pareça muito ocupado
o lojista sem loja
o especialista sem espécie
— fabulosos, ambos, por conseguirem
enganar a todos —
o erudito que compra livros no antiquário
para os apadrinhar no espólio da família
o corrector da bolsa de alto nível
(tão alto, o nível, que ninguém tem nível para o contratar)
o criativo na pose de emborcar shots
o sonhador que só o é no fim de uma noite
de charros e cervejolas
a engraçada e autónoma
para tudo, excepto existir.
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os meus amigos?
todos pessoas interessantes
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a prova disso
é que não se interessam por ler
nunca precisaram de aprender nem perguntar nada
nem, sequer, de abrir um dicionário
jamais se preocuparam com o sentido
da vidinha
(aliás, desprezam — porque são espertos —
qualquer menção
despropositadamente feita
ao comum dos porquês)
não tenho ideia de quererem ter
algum
querer
nem os imagino, de modo algum,
a efabular
quanto ao que querem
melhorar ou mudar
ou (impensável!)
abandonar
negar
reconstruir
de vez.
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os meus amigos
são pessoas interessantes
porque são os espertos
e desprezam, com grande enfado,
tudo o que ressoe
a obra
a compromisso
intenção e
sentido.
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são livres, percebes?
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livres de tudo isso
os meus amigos
todos
interessantes
são, como tal,
conhecidos pelos apelidos
de quem lhes paga renda cervejas
e muda as fraldas.
que os meus amigos
são todos
filhos interessantes
de pessoas importantes que os amam
como tal
não os educaram
na contrariedade.
no fundo, é isso"
— não os educaram
para o milagre profundo
da existência
(não o disse. mas podia ouvir-se.
bem).
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maria toscano
Coimbra, Jardim da Manga, 5 Set/ 2008
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