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terça-feira, julho 19, 2011

eu vou com as árvores. poema 7.

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foi contigo que aprendi as árvores.
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ainda no ovo
passeavas-me à beira do capim
ao fresco do cacimbo
quando a Selva, materna,
recolhia todos os filhos
em guinchos aos saltitos
em pios esvoaçando
em corridas silenciosas rente às folhas
em rastejantes regressos à humidade
e em braçadas quase submersas
só visíveis pelas bocarras pretas
ou os remoinhos
suspeitos
de grande porte.
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a Guiné foi a minha primeira terra
percebi mais tarde.
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precisamente pela soberania das suas lianas
folhas e folhas, ramas e ramas
e ramos
e troncos
e obeliscos eternos de madeira
fóssil e imberbe
paciente tão paciente
da Guiné trouxe
no ovo
as histórias saudosas
da planura da tua infância
custosa
laboriosa e explorada
e solitária.
um menino de 11 anos
enviado para a madrugada dos kilómetros a pé
campos calcorreados quase às escuras
não fora a lua
à chuva ao frio e
ao medo
um menino de 11 anos
acabado de sair da escola
a quem a máscula voz
(do pai? da ditadura?)
proibiu a escolha do ofício
de mãos
fascinadas pela madeira.
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barbeiro, sim.
carpinteiro, não.
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tu, mantiveste-te fiel às árvores
aos cheiros aos veios e
aos medos
pois nasceras para desbravar caminhos.
o teu signo confirma tua liberdade
a tua, sempre firme, liberdade
de homem nascido em Janeiro
no 25 de um ano de
tempos e fardas pardos
a mesma data em que os cravos
bem mais tarde mas ainda a tempo
viriam a florir.
das armas, também,
e das mesmas armas a que te votaste
pela consciência
que o apelo da terra ensina
a consciência da justiça
da incontornável voz certeira
liberta, pois solidária.
foi assim que te achaste homem
(assim que já ninguém te podia proibir de seres tu)
decidiste
a vida das armas
com a consciência
que o apelo da terra ensina.
qualquer tropa
com excepção da PIDE.
a tua vida de armas
aproximou-te das pessoas
e fez-te ainda mais sábio
acutilante incisivo preciso num relance
um mero relance
para leres qualquer pessoa
até aos dentros.
percebi mais tarde
precisamente pela soberania
das tuas legendas
lapidares.
sim, uma legenda te bastava
para resumires esse
relance.
a vida das armas das pessoas
da tropa, com excepção da PIDE
guiou-te, de forma merecida
aos calabouços da polícia política
no tempo em que, por fim,
se desmantelou essa trave
boçal
da nossa história.
só nessa tarefa foste homem de mão:
da consciência da justiça
da incontornável voz
certeira
liberta, pois solidária.
assim foste ascendendo
mais do que nas hierarquias
baças da vidinha
foste ascendendo ao topo
da nobreza
reservada a muito poucos
vedada aos ridicula vitae do Poeta Sena.
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entretanto
sempre que a ida ao Sul
se impunha
inadiável regresso à origem una
térrea plana
ao amplo horizonte
ias falando contando
apontando formas de folhas
anotando histórias de frutos
sublinhando estilos
de crescimento e pujança
das árvores.
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ainda bem que a vida te trouxe para fora do Sul
(percebi-o mais tarde)
obrigando-te ao exercício da memória
partilhada
das legendas
dos contos mágicos
para não esqueceres as árvores.
nessa luta só descansaste
ao plantar em frente à tua janela
em solo urbano
supostamente destinado a flores urbanas
as plantas. as tuas árvores.
os vizinhos (que aqui se chamam condomínio)
quando falaras em cultivar o terreno
aceitaram sem hesitação
imaginando, comentávamos depois,
malmequeres e outras florições
tão preciosas que são nas jarras urbanas.
nada disso prometeras.
falaras em cultivar o terreno que estava abandonado e era um crime.
e foi com espanto
com muito espanto
por não perceberem antever nada do que ias
semeando cuidando regando olhando
feliz
foi com espanto que viram emergir
alfaces couves salsa e coentros batatas
e
as tuas árvores.
a pereira.
a tangerineira.
e o limoeiro
fértil
ainda hoje transbordando de frutos
amarelos e sumarentos como amargos.
logo o espanto ficou por aí
e não chegou a ser desacordo
pois toda a plantação era decorada com fileiras
de jardins
lírios jarros rosas
e mais flores rurais e urbanas
lindas viçosas coloridas
pois tinham por companhia mãos
que sabiam cuidar de árvores.
mas — e só percebi mais tarde —
outra foi a verdadeira razão pela qual o espanto
não se converteu mesmo em confronto:
quando tu começaste a colher e
a oferecer as colheitas.
a dádiva
reverteu o espanto em gratidão.
a dádiva desprendida
regada pela consciência
da justiça incontornável
liberta e amável, pois solidária.
eras assim. foste sempre assim.
(na gestão das Messes, repartias por todos os víveres sobrantes
enquanto os anteriores no teu cargo,
as vendiam aos colegas, para lucro pessoal.)
foste sempre assim.
cioso dos teus haveres.
amoroso com o universo.
um gato que espreitasse merecia-te o sorriso e
a frase de chamamento: bchhhh bchhhh bchhhh .
um passarito, um mero pardal
ordenava-te a paragem
extasiado
a contemplação.
amoroso com tudo
o que está fazendo girar o universo.
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aprendi isso / muito muito mais tarde,
pai.
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foi contigo que aprendi
as legendas.
e o humor
imprevisto (para ser humor).
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ainda hoje (percebi-o muito mais tarde)
amo as tuas legendas.
amo as tuas armas floridas.
amo as plantações urbanas e as do Sul.
e amo
e cada vez mais
as árvores.
legaste-me as árvores de todo o mundo.
por isso, para além de tuas
são minhas
precisamente por não serem minhas
precisamente por nunca
poderem vir a ser minhas
precisamente porque
também como tu, pai,
um dia,
eu vou com as árvores.
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maria toscano
Coimbra, 'Café Trianon'.
18 Julho/2011
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Sem comentários:

já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
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faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
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chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
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nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
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como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
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ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
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