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terça-feira, agosto 02, 2011

Da vida das farturas.

. . .
já fui _uta.
comecei por começar no vão da escada
da casinha onde morava com uma
avó
tão engelhada e lambuzada
como sábia
da vida lambuzada e engelhada
na vida.
comecei por curiosidade
e vício desvio destino
por pobreza. não sei.
talvez só por contradição
adolescente rebuscando caminhos.
não herdei, pois, esta vertigem lambuzada.
não há no mundo ninguém mais avesso à vida
do que essa avó sabida que eu tive em menina.
o pior foi, à rebeldia,
ir-se juntando
o bâton novo
o salto alto dourado
o preto, decotado.
miçangas a roçarem-me
as coxas
lantejoulas a contornarem
me o corpo
e os primeiros clientes
vizinhos
sempre voltavam e
acompanhavam-me num copo ou dois
que pagavam. em três ou quatro cinco seis sete
ou dez que, gentis,
cobravam gentis como teimosos até à paga.
diziam-me que era linda e quente
e me queriam só a mim.
mentiam
eu, nessa época, acreditava mesmo
que eu era mesmo a princesa
e, eles, o meu harém.
na escola secundária, o liceu!,
também, nessa época, tive mais-valias:
a inveja das virgens dondocas
a raiva das outras pê-semi-virgens
(como aprendi com o António)
as lutas desbragadas
dos mais velhos
para não serem recusados
à segunda vez.
as brigas disfarçadas
dos mais novos
para serem iniciados.
. .
o tempo cresceu num ápice e, num ápice,
habitei a Rua de Baixo
à noite
para dormir na Praça Velha
até à tarde
com um homem peludo
enorme. meu protector
de rixas sérias
naifas
e outras feridas.
só tinha de cozinhar para ele e
lambê-lo muito
— que mais queres, tu,
....para a tua netinha,
....se ele me dá tudo o mais?
insistia com o meu ar diáfano
desacreditada
pela engelhada
e sábia avó
— isso que ele te dá és tu que
....pagas, tudo!
....ó tu julgas que eu nã sei?
....vá! diz que é mentira!
....vá! ora diz-me lá!
diáfana, _uta ainda diáfana
eu palrava das mãos fortes
da barba a raspar-me a nuca
da língua despudorada e
dos olhos pretos pretos
a iluminar-me, pensava eu,
a vida.
foi breve essa miragem.
num ápice
aprendi-lhe
a real força dos punhos
o raspar sangrento de unhas
e coices
no avesso da miragem.
o deserto.
a única força que encontrei
então
estava no rodopio de clientes
na incansável fuga de um
para todos
livre indomável
pensava eu.
afinal cada vez mais esvaída
de mim
do meu corpo e da minha alma
de mulher.
se me custa recordar? não!
quem vive o que vive
pode sempre recordar o que viveu.
é falso, isso que dizem.
recordar não é viver.
até porque nesse rodopio eu não vivia.
estava para ali
aberta
onde calhasse
onde passasse o cio boçal
em contramão.
se me culpo do que fiz?
não. quem se culpa
nunca vê o essencial da vida:
o escolher.
já fui _uta, sim.
assumo.
reconheço.
entre caldaços sovas
sobras e vielas
fui dar a esta roulotte
esfaimada
esganada
vazia.
— fartura sem canela e café quente com leite
foi a palavra-passe para o presente.
se ele me diz que me ama?
credo! nunca!
mas se ele me ama mesmo?
e eu sei lá?
sei, sim, e assumo
pois reconheço
ter começado num vão de escada
da casinha
de uma avó, a minha, sábia da vida,
lambuzada de andar na vida e engelhada
para me vir encontrar
engelhada
nesta casa de farturas com rodas
onde provei
por vez primeira
a noite doce.
.
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maria toscano.
Coimbra, Café 'Santa Cruz'.
2 / Agosto / 2011
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Sem comentários:

já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
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faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
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chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
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nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
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como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
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ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
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