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regresso à casa dos pássaros.
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regresso à casa borbulhando de chilreios e coresem feixes intensos, por fluxos cristalinos
por frestas portados janelas
ombros joelhos
e telhas
habitados.
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regresso para conversarmos.
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ao sentar-me, o banco de bunho amarelo estala..
asas rodeiam-me e pousam num círculo branco
até a roda do silêncio se iniciar.
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pelas traves, barrotes castanhos
minúsculas luzes doiradas
trazem alaridos de outros
bandos de pássaros
destinados a estar
só ali. só assim.
sentinelas no cromatismo de dias corpos e casas.
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lá fora, no vão da escada, uma argola de ferro
continua a enferrujar-se
enquanto segura o nó de corda suada
de onde já penderam cascos e tetas sequiosos
estafados por açoites de braços e passos
nesse então de caminhos cruzados
negreiros esfarrapados
armaduras baças de burros
cargas do tempo de feiras
cruzados mestiços escravos
mercados
dorsos ancas gestos e seios esgotados
onde braços e saias
ao depor as alfaias ou no vão de escadas
estafavam desejos sequiosos cios de assaltos
plebeus.
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regresso à casa dos pássaros de seda. garridos..
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sentada no banco de bunho devagar miro tudo ao meu redor..
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na casa dos pássarosonde vim para conversarmos
respira-se a cânfora do baú azul.
um avental de estopa atirado para a pilha de esmalte lascado
persiste, rebulhado.
assoma o vaso de noite, quebrado na pega de barro,
por detrás da outra pega, branca, a do jarro florido
verde
intacto
assente na meia bacia meio esverdeada.
à parede em frente encostam-se ripas de ferro
verde
forjado há tempos forjado à mão
ripas que, há tempos, fizeram uma bela cama de noivado.
no chão
4 bolas de cobre sujo já não cintilam
areadas
como naquela noite em que desfizeste
a trança virgem
pela última vez, Amália.
ah, como tu, João José, gostavas da trança dela.
e ainda mais do destrançar de orgulhos e pudores
simples. mulher do campo
inteiriça
nesse tempo em que guardas-fiscais cinzentos e pobres
fechavam os olhos a contrabandistas pobres e sebentos.
nesse tempo onde
se o restolho era igual dos dois lados da raia
já as argolas roçando orelhas e lábios das mulheres de lá
te faziam perder razão ordenado sentidos
( "é só desta vez!" ).
como ele te adorava. à sua maneira, Amália.
como, só tu, sabias a maneira do avô João.
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sentada no banco baixinho mirando ao redor
inspiro os teus odores delicados e meio ciganos e endiabrados
e consigo perceber, avó, a tua majestade
de mulher ferida
fêmea ou verbo desejar.
sentada sobre
tudo dominas, avó Amália,
frágil delicada e majestosa
apesar do insistente odor a húmido bolor.
insistente fino entranhado nos rasgos
da enxerga com riscas castanhas entre o preto e o lilás
riscas sobreviventes
como a colcha de seda puríssima
ao fogoso avô João José, que te adorava (à maneira dele)
sobreviventes ao ficar de fora do baú.
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olho miro penso e cismoque nunca pude entender
como pudeste esquecer
-te de emalar a colcha
com bolinhas de naftalina e muito amor.
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sentada para conversarmos, avó,reparo agora que talvez fosse de propósito.
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deixada ali, assim, perdida e mal dobradaa seda amarela, borbulhando de luz e cores
tem sido o resguardo dos chilreios cristalinos
que, asa após asa, avermelham e azulam a casa
— onde hoje me aguardas, sentada, para conversarmos
... nesta casa, a dos pássaros
....garridos na puríssima colcha de seda.
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maria toscano.
Coimbra. 7 e 15 / Agosto / 2005.
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