Parábola da Fala.
da sociologia à poesia:
poiesis da indignação, da partilha e da esperança
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1.
indago: por indignação? (Nunca conheci quem tivesse levado porrada)
por partilha? (Minha laranja amarga e doce)
por esperança? (se ela não vier de madrugada/outra que eu souber será para ti)
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indago de novo: por que motivo continuam os homens a escrever Poesia ? por que motivo continuam os homens e as mulheres a escrever Poesia ?
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por Amor? (Beija-me as mãos, amor, devagarinho) Poder ? (Levantai hoje de novo/ o explendor) Simbolismos ? (Uma pequenina luz bruxuleante e muda)
tento novamente: por que motivo continuam as pessoas a escrever... a esculpir, a desenhar, a representar, a construir, a destruir, a guerrear, a plantar, a pescar, a caçar... a trabalhar...?
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para adiar a morte? (Guardo a tua voz dentro de mim./ E deixo-te as rosas. / Boa noite. Eu vou com as aves)
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e um rol de perguntas outras pode acrescentar-se ao anterior: por que motivo continuam as pessoas a assear (corpos, casas, roupas), a temperar comida, a cuidar de outros ...?
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por Amor, Poder, Simbolismos? para adiar a morte?
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implicativo, irritante, impertinente - e «chato» - este modo insistente (obsessivo para alguns) de obrigar a ter em conta que as pessoas tanto são «os homens» como são «as mulheres», sobretudo sabendo-se que tão pouco existem «os homens» e «as mulheres» como partes homogéneas da condição humana.
E assim continuará a ser - implicativo, irritante, impertinente - e «chato» (e obsessivo para alguns) - enquanto a condição humana, as pessoas, continuarem a ser resumidas por fórmulas da metade.
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2.
Por que motivo continuam as pessoas a escrever Poesia ?
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porque o mundo está incompleto, dizem uns. (Creio num engenho que falta mais fecundo/De harmonizar as partes dissonantes).
porque o mundo é imperfeito, têm dito outros. (Roer um osso - humano, se possível -, é o sonho português de sobrevida).
porque o mundo e a vida têm potências que estamos a esbanjar ou ignorar ou denegar - acrescentam outros. (Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa! ) // (Gastámos tudo menos o silêncio) // (Para ser grande sê inteiro. nada teu exagera ou exclui)
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porque a vida não está a ser cumprida enquanto a tomarmos como um destino herdado - destino prescrito -, enquanto não a tomarmos como o destino que queremos inscrever agora no universo, agora neste país, agora nesta sala, agora no meu cérebro, agora no meu corpo, agora na minha memória que é património que partilho com a memória colectiva. (O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo) // (Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida)
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3.
continuar-se-á a escrever, a esculpir, a desenhar, a representar, a construir, a destruir, a guerrear, a plantar, a caçar, a pescar, a trabalhar e a cuidar de outros enquanto o destino for o que há que reproduzir.
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continuar-se-á a escrever e..., e..., e..., enquanto se vai descobrindo que o destino é o que cada um/uma destina (entre os múltiplos condicionalismos da existência), i.e., o que se escolhe, decide, sente, faz, deseja, pensa e sonha, e o que não se escolhe, não decide, não sente, não faz, não deseja, não pensa e não sonha.
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estes 7 modos de destinar a vida - escolher, decidir, sentir, agir-fazer, desejar, pensar e sonhar -são multiplicáveis ad libitum e ad infinitum.
e todos estes modos de destinar a vida são sincronizáveis com as tarefas, obras e actividades humanas, inclusivé, a da guerra.
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4.
argumentos possíveis rejeitam que escrever poesia, e todas as formas de arte, se distanciam das tarefas humanas mais comuns pela recusa em evidenciar os limites, humanos, ou outras baixezas (pedofilia, prostituições, escravaturas, alienações, toxicodependências, idealizações, colonizações... as tais fórmulas da metade); (Ser Poeta é ser mais alto)
argumentos opostos consideram que cabe às artes a denúncia dessas baixezas e limites, humanos; (Porque os outros se calam mas tu não)
argumentos outros ignoram tal dicotomia ascese/militância; (Contar-te o mar ardente e o verbo amar. / E longamente as coisas perigosas)
argumentos que se conhecem.
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como, sabêmo-lo também, que o que não tem nome não é reconhecido como realidade ou existente.
dizendo de outra forma: na incompleta busca da completude a pessoa humana percebeu que, ante cada realidade ou existência, se não a criava, pelo menos tinha de dar-lhe o nome.
e, depois, percebeu que o próprio nome só é reconhecido como realidade, como existente, quando inscrito.
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esse nome, quando não emerge pelos 7 modos de destinar a vida - se apenas resulta da crença no destino prescrito - esse nome, quando é exterior, é erróneo.
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escreve-se Poesia para dar nome, nomear?
escreve-se Poesia para para criar com mais realidade os nomes?
escreve-se Poesia para criar realidades?
escreve-se Poesia para criar?
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escrever-se-á.
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enquanto se for descobrindo que o destino é o que cada um/uma destina (escolhe, decide, sente, faz-age, deseja, pensa, sonha e não-escolhe, não-decide, não-sente, não-faz nem age, não-deseja, não-pensa e não-sonha).
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enquanto tal, escrever-se-á Poesia. Escrever-se-á.
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de fora das coisas e de dentro das coisas. de fora das pessoas e de dentro das pessoas. de fora da vida e de dentro da vida.
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nesta descoberta fenomenológica - nesta époké - do que é destinar a vida,
um dia,
chegar-se-á, creio, ao pleno entendimento de que
primeiro que tudo, destinar a vida é ser solidário e fraterno, pela partilha.
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só deste modo podemos, poderemos, então, nomear o diferente em igualdade (ao invés de, pela indignação, nomear ou recusar o nome que hegemoniza o diferente como igual).
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e só, depois, e por fim, poderemos presumir, pela esperança, a podermos destinar a vida, este supra-sumo da liberdade.
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portanto - e concluo com esta provocação -
escreve-se, escrever-se-á
até aprendermos que destinar a vida é construir, primeiro, a fraternidade; em segundo, a igualdade; e, assim e só então, a liberdade.
(Et par le pouvoir d'un mot /Je recommence ma vie / Je suis né pour te connaître /Pour te nommer...)
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maria toscano
Coimbra, 20 abril/2008
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intervenção na III Bienal de Poesia de Silves, mesa redonda de 26 / Abril / 2008: «Porque motivo continuam os homens a escrever Poesia?»
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