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à entrada da Avenida, agora em obras, ainda estão, num pedaço de pedra, as argolas grossas onde se prendiam os animais esgotados.
chegavam a quatro patas mas ao ritmo de quem só tem duas, agastados pela chapada do astro, cimeiro a olivais, caminhos, gentes e animais. chegavam, pois, ao ritmo das duas patas que, de quando em vez, se tornavam quatro - de quando em vez, sempre que a chicotada da cana os reconduzia ao reino das bestas de carga. esgotados pela chapada cimeira da verga e pela chapada, ainda mais cimeira, do astro, todas as bestas - as de carga e as humanas - suspiravam por frescuras de sombra.
pouco importava se corria aragem ou se o ar pesava, tão-só bastava que, em vez da moldura constante - seco constante - se levantasse, num dos lados da passagem, um muro.
espesso, largo e grosso - feito de pedras do tamanho de uma cabeça, de um pé e até mesmo da palma da mão - um muro: de pedra, por dentro; de cal, por fora.
Um muro era o primeiro desejo dos que caminhavam ladeados pelas constantes cores ressequidas.
Um muro era o grande oásis - na peregrinação do trabalho para casa.
perceba-se porquê.
antes de mais, porque ao dizer muro quer-se significar uma elevação de parede refractária ao peso de chuvas e calores, de altura suficiente para abrigar, pelo tempo necessário, quem a ele se encostasse. mas também porque a mesma parede só se convertia em muro quando alguma criatura a ela se encostasse.
perceba-se, então que, à semelhança de tantas - ou de quase todas - as coisas, a identidade do muro dependia da relação e da interacção com o mundo à sua volta, com o mundo que o rodeava.
por si só, aquela parede - ou outra similar - de nada valia, nada significava. ou melhor: significava muito para esse alguém que o tivesse construído, pedra a pedra, recheado de terra, areias e troços de paus. significaria muito para o seu criador e, porventura, para os que o respeitassem ou lhe invejassem a arte de fazedor de muros. mas, uma vez construído, erigido, nada mais significaria se ali ficasse abandonado ou isolado do quotidiano de todos.
frequentemente acontece ao que é criado perder significado e só ter valor no exacto momento da criação.
deve ser por isso que, nos tempos de hoje, se vive rodeado de campanhas que insistem na importância e na necessidade de coisas criadas as quais, sendo absolutamente inecessárias, ganham - pela obsessão da campanha - a importância e a própria identidade que só servem a quem as criou.
no caso dos muros talvez também isso aconteça nos tempos em que, acima de tudo, se pergunta sobre o valor hipnótico das coisas - sejam elas pedras, animais, vegetais ou outras criações.
mas o muro de que se falava era de outros tempos, quando o valor dependia do sentido.
repare-se que variadíssimas dessas paredes, mesmo se rachadas ou derrubadas, continuavam a ser muros. é que os tais que davam identidade de muro a essas paredes mantinham o hábito de reunir-se naquele lugar, mesmo que o lugar já não cumprisse a função de acolhimento durante uma trovoada ou de frescura face à calmaria ardente.
estranho? absurdo? irracional?
para os que, então, continuavam a reunir-se perto da parede que significava muro era bem simples: debaixo de água, de trovoada ou da torreira do sol, pelo menos ali estavam juntos e, por momentos, irmanados.
como outras pedras - pirâmides, obeliscos, templos, catedrais, pelourinhos, pátios, adros, largos, antas, cemitérios, arenas, pontes ou estátuas - que, mesmo se quebradas, prosseguiam no cumprimento do mesmo significado ainda que não conseguissem cumprir a função de abrigo imediato: continuavam a ter o sentido, a ser lugar de encontro.
por isso é que um muro, ali, apaziguava o tempo enquanto o tempo do regresso demorava.
naquela terra, aonde se acedia pela torreira dos dias, eram os muros que uniam os peregrinos diários, de passagem entre a farta ceifa e a paga magra de cada jorna.
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Um muro - ali - unia o que noutras terras separava.
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maria toscano, Campo Maior, 27 Julho/ 2008
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