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segunda-feira, maio 24, 2010

custa muito ver o pai chorar

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custa muito ver chorar o pai
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quando chegavas das comissões / — dizíamos: das colónias, do ultramar; dizemos: da Guerra Colonial — / quando chegavas/ antes, vinha sempre um telegrama/ branco / a confirmar a chegada/ do barco e/ a informar sobre o cais/ onde desembarcavas/ e / antes/ também vinha sempre um aerograma/ (amarelinho ou verdinho ou azul turquesa-clarinho) / onde nos anunciavas que estavas bem (há 15 dias! que era o tempo da viagem do barco)/ e que acabavas a comissão / no dia x/ pelo que já não nos enviavas mais aerogramas.
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esses dias — os do último aerograma — iniciavam os rituais de renascimento de todas nós/ e deitávamos mãos à limpeza e embelezamento/ da casa.
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cada uma de nós/ — cada uma com diferentes mãos de diferentes habilidades e tamanhos —/ esfregava os tacos com palha-de-aço/ os tachos e pratos amarelos de família (os de estanho não me lembro agora como os políamos) com esfregão de esparto e areia / ou, mais tarde, / com o produto maravilhoso, a sularine, que vinha numa garrafinha de lata dourada onde sobressaía um coração verde e vermelho, patriótico pois, atravessado por uma seta dourada./
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a sularine poupava-nos / algumas dores / de músculos (nunca assumidas):/ 'o pai vai regressar! o pai vai regressar!' /
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cada uma de nós/ com diferentes tamanhos de mãos — com as nossas 6 mãos — / tirávamos so cortinados das sanefas/ lavávamos, / à mão, no tanque, / os cortinados/ encerávamos, à mão, as sanefas/ e o chão / entretanto já limpo.
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cada uma de nós/ com as nossas 6 milagrosas mãos/ tirávamos a loiça toda dos armários/ e lavávamo-la/ à mão/ no lava-loiça de uma torneira/ só / de água fria. /
antes, as panelas e as cafeteiras de alumínio, / as maiores, / eram cheias de água e / postas ao lume/ até que fervesse/ para termos água quente que se misturava, no lava-loiça, / à água fria.
aliás, nem era mesmo no lava-loiça:/ havia 3 alguidares: / um, para "fazer a água" da lavagem, com detergente com grãos azuis que desciam de uma embalagem de cartão, cada vez mais húmida, com o uso/ o outro, para as águas de enxaguar e o outro/ era onde se ia pondo a louçada a escorrer, pois o escorredor depressa ficava a abarrotar.
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com as nossa saudosas 6 mãos/ limpávamos com panos de louça/ que se sucediam/ vencidos pelo encharcanço/ de tanta louça húmida que havia que limpar e secar até brilhar/ e depressa/ para, por sua vez, caber outra tanta — lavada / e enxaguada em várias águas —/ a escorrer.
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os alguidares tinham começado por ser barro/ de vários tamanhos/ em tons de castanho e/ com flores alentejanas pintadas. / depois, à medida que o verniz / saltava ou que se rachavam e partiam, passaram a ser / de zinco / cinzentos / tristes. / mas os mais modernos/ eram os mais garridos; de plástico vermelho/ creio.
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quando chegavas da comissão/ as nossas 6 mãos obedientes ao estado novo / aos medos e à cartilha maternal / levantavam e sacudiam tapetes/ colchas/ passadeiras carpetes e / todo o tipo de abafos. / bem que as batíamos, às carpetes!/ ou, se dava, bem que os lavávamos. /
havia uns rolinhos de madeira / com uns grampozitos nas extremidades/ próprios/ para segurar as passadeiras / na escada da entrada. também esses pauzinhos eram encerados/ pelas nossas 6 carentes mãos.
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penso, agora, / como a relação com estes elementos — água, lume, madeira e pele — / nos ajudaria na espera.
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quando regressavas vivo de uma comissão/ cozinhavam-se pratos / e sobremesas / apropriados para o teu regresso/ (em casa de remediados/ havia que planear bem os gastos)./
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tenho a certeza de que nos trazias / prendinhas/ a todas / mas, agora, / — desculpa lá! — / não me recordo de quais. / porque o teu abraço a nós as três/ e às nossas 6 mãos mais crescidas / era tudo o que queríamos/ e não esqueço.
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quando chegavas da comissão. / de uma vez, recordo: / era época de Natal / fomos, só nós os dois/ ao musgo/ para o presépio. / nesse ano/ ainda não andaria na escola./ nesse ano/ deste-me a tua mão / forte/ e ajudaste-me a subir ladeirinhas caminhitos e passagens / com lama e folhagem/ que nos meus medos / de gaiata eram precipícios / tenebrosos./ mas ali ia a tua mão/ forte e meiga/ a guiar-me e a amparar-me. / voltámos dois perfeitos cúmplices / com os sapatos encharcados/ os pés molhados ( 'óh, óh! então nã é que ainda se constipam? para quê tanto musgo?' ) / mas com uma escolha e um carregamento de musgo / invejáveis para qualquer um./
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naquela época./
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um homem também chora — digo-o frequentemente./ e sinto-o/ revoltada e indignada contra essa mentira/ deslavada/ da mulher sensível-burra/ e do homem só razão-bruta.
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nesse ano, /
pai, /
deste-me a tua mão /
forte e terna.
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noutras vezes, pai.
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sempre que saía contigo, pai:/ dávas-me a tua mão/
forte e terna/
e ajudávas-me. /
ensinavas-me a travessia de ruas, multidão, trânsito e vida.
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percebe-se, agora, porque é que
custa muito
ver
o nosso pai
a chorar?
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maria toscano.
Coimbra, Galerias santa Clara
23 Maio/2010.
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10 comentários:

Unknown disse...

Muito BONITO, Maria.

Que texto!!

Um grande beijo e abraço, tudo junto...

A. Pedro

Jemasc@gmail.com disse...

Se calhar deixei o fumo e fiquei mais atento. Gostei, lembrei-me de de um texto chamado "Fuga da Morte" de um judeu em pleno campo de concentração ( Paul Celan) e lembrei-me do meu pai tb que por lá andou tb. Abracinhos e obrigado.

emedeamar disse...

António Pedro! Abraçooooo! (tenho a tua tese, ai! ai ai!)
:-)
MUUUUUITO OBRIGADA PELAS TUAS PALAVRAS
— e atua tese eu devolvo-ta, palavra de maria tê :-) —
bjssss, Grata, mt

emedeamar disse...

Mascarenhas: SIIIIIM, PELO QUE VEJO! DIGO: MAIS ATENTO NÃO QUERO DIZER, sempre foste; talvez tenhas é masi tempo e menos ansiedade... tabagística :-)

OBRIGADA!. ponto. Muito Grata, mt, tua Amiga.
:-)

Unknown disse...

dos mais belos maria
dos mais belos
o teu ser toscano toca-nos
e nós, homens,
choramos

emedeamar disse...

António (quem é? desculpe, não reconheço) : Obrigada! mt, Grata.

© Maria Manuel disse...

um texto sentido, de afectos, de memórias infantis, num contexto de efeitos de uma situação de guerra. boa narrativa.

emedeamar disse...

Maria Manuel: (re)Bem Vinda! Fico feliz (merecer-lo-ei? ) peço que escreve. Obrigada. mt

Unknown disse...

o antónio tem apelido cravo e é um homem que chora com facilidade, segundo a info colhida no face.

beijos rsrsrsrrsrs ;O)

emedeamar disse...

António, António Cravo! Bem vindooooo! e Bem hajas plas tuas palavras! Abraaaaaçooooo! da mt

já de abalada? ande cá! corra a cuartina de riscas e sente-se aí no mocho (no canapé? é melhor nã, nã seja que as preguetas lhe dêem cabo da roupa).
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faz calôrê nã? é tempo dele! no cântaro hai água fresquinha! e se quiser entalar alguma coisaaaa... a asada das azeitonas está chêinha, no cesto hai bobinha e papo-secos (com essa chôriça... ou com o quêjo de cabra, iiiisso!, nessa seladêra de esmalte!);
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chegue-se à mesa! - cuidado não lhe rebole a melancia para cima dos dedos do péi... assim... - entã nã se está melhórê?
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nã, nã, agora nã vai máinada! estou a guardar-me pra logo... ora na houvera de sêri! ah! já lhe dê o chêro! pois é: alhos e coentros e um nadica de vinagrê... vem aí do alguidar de barro... sim, sã nas carnes prá cêa.
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como nã sê o que o trouxe cá, forastêro, ‘stêja nesta sulmouradia como à da sua: pode ir mirando os links ("do monte"; "olivais..."; "deste planAlto..."; estas é que são...") os montes de que gostamos; pode ir vendo os posts por data ou esprêtando as nossas etiquêtas
("portados"); ou pode ir passando os olhos só pelos mais recentes.
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ah! repare lá que por estes lados nã temos o hábito de editarê todos os dias - não é um blogue-diário, 'tá a vêri?; pensámo-lo antes como sendo uma espécie de blogue-testemunho das vozes do Sul (o de cá e os Suis todos); mas temos ainda muito qu'arengar... vamos lá chegando, n'éi? devagarê, que o sol quêma!
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