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do outro lado da via
reflecte-se o sol nos vidros
onde os taipais, encerrados,
albergam mesas mobílias
gestos intenções sentidos
milagres de róseas rosas
e um gato de pêlo russo
se enrosca no xaile gasto.
do outro lado da via
descem, descendo o passeio,
pulsos assarapantados
fumos de ilusões ou ócios
um casaco desabotoado
pernitas encanastradas
um blusão, uma mochila
duas mãos dadas, rugosas,
olhos brilhantes em jovens
passadas à pressa de quem/ vai revolucionar o mundo.
do outro lado da via
pulmões suspiram coroas
flores e asas de cores
esvoaça uma promessa
tenta-se uma aventura
conjectura-se o atraso
da passagem do andor
afivela-se um sapato
acerta-se um colarinho
desce-se a mini subida
do lado de lá da via
onde espairecem velhotes
os pombos os namorados
a viúva e seu rosário
uma índia, um crioulo
e pastéis de Santa Clara
balouçam no saco branco
de plástico transparente
junto da lata de chá
Lipton / ou guaraná.
do outro lado da via
fica o ar carburado
com o mini o desportivo
o smart descapotável
e uma bicicleta à mão a atrasar o condutor.
sobe uma fita branca
enlaçada na trança.
de preto, um pós-moderno
oldfashioned na pedrada.
descem caracóis dourados
onde se reflecte o sol.
do outro lado da via
pensamentos baixam os olhos,
tristezas geram tormentos
em olhos arregalados
e fazem o andor pesar.
pára-se a ver uma montra
enquanto se passa o tempo
para não se chegar, lá, cedo
entra-se café adentro
para amestrar a amargura
com o álcool emborcado
na esperança de, à entrada,
se dar a aparição
marcada em carne e osso
fascinante inquietante
perturbadora do ranço
onde abolorece o futuro
e nos cega o ver, imóveis,
que, no lado de lá da via,
confissões são adiadas.
no 3.º andar direito
há choro em convulsão,
enquanto, ao lado, um cachopo,
muda a pilha ao cavalo / que o eleva a Rei D. Pedro.
à volta pairam, alados,
— do outro lado da via —
segredos intuições desejos
aguardando pacientes
que queiramos ou nos dignemos
perceber que só há vida
no que move o movimento
— não neste poiso cinzento
de mira embutida imóvel
mo outro lado da via.
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maria toscano.
Coimbra, ‘Afterhours’, 17 de Maio / 2004
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