Os Fuzilamentos de 3 de Maio .
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Francisco de Goya (1746 - 1828)
data: 1814
104.72" X 135.82" - Museu do Prado - Madrid
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. Carta a Meus Filhos
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. Os Fuzilamentos de Goya
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. Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
. É possível, porque tudo é possível, que ele seja
. aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
. onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
. de nada haver que não seja simples e natural.
. Um mundo em que tudo seja permitido,
. conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
. o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
. o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
. ainda quando lutemos, como devemos lutar,
. por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
. ou mais que qualquer delas uma fiel
. dedicação à honra de estar vivo.
. Um dia sabereis que mais que a humanidade
. não tem conta o número dos que pensaram assim,
. amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
. de insólito, de livre, de diferente,
. e foram sacrificados, torturados, espancados,
. e entregues hipocritamente â secular justiça,
. para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
. Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
. a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
. à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
. foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
. e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
. ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
. Às vezes, por serem de uma raça, outras
. por serem de urna classe, expiaram todos
. os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
. de haver cometido. Mas também aconteceu
. e acontece que não foram mortos.
. Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
. aniquilando mansamente, delicadamente,
. por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
. Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
. foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
. há mais de um século e que por violenta e injusta
. ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
. que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
. e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
. Apenas um episódio, um episódio breve,
. nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
. de ferro e de suor e sangue e algum sémen
. a caminho do mundo que vos sonho.
. Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
. vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
. É isto o que mais importa - essa alegria.
. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
. não é senão essa alegria que vem
. de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
. está menos vivo ou sofre ou morre
. para que um só de vós resista um pouco mais
. à morte que é de todos e virá.
. Que tudo isto sabereis serenamente,
. sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
. e sobretudo sem desapego ou indiferença,
. ardentemente espero. Tanto sangue,
. tanta dor, tanta angústia, um dia
. - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
. não hão-de ser em vão. Confesso que
. muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
. de opressão e crueldade, hesito por momentos
. e uma amargura me submerge inconsolável.
. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
. quem ressuscita esses milhões, quem restitui
. não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
. Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
. aquele instante que não viveram, aquele objecto
. que não fruíram, aquele gesto
. de amor, que fariam «amanhã».
. E, por isso, o mesmo mundo que criemos
. nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
. que não é nossa, que nos é cedida
. para a guardarmos respeitosamente
. em memória do sangue que nos corre nas veias,
. da nossa carne que foi outra, do amor que
. outros não amaram porque lho roubaram.
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. Jorge de Sena (1919 - 1978)